sábado, 8 de outubro de 2011

Da série (não) Conto: Louça pra lavar

Ela encarou a pia de louça com bravura. Independente de ter sido ignorada durante todo o almoço, independente de ter preparado todos os acompanhamentos e os quatro tipos de sobremesa, independente de ter trabalhado 50 horas naquela semana, independente da unha encravada e a maldita gastrite, independente de tudo, ela estava ali, relegada a passar a sesta do domingo lavando louça, mas estava tudo bem. Ela se convencia de que estava tudo bem, estava tudo muito bem, como sempre esteve. Tinha sua casa, amigos cordiais e todos admiravam suas prendas e dedicação ao lar. Era exemplar como queria ser. E enquanto esfregava com afinco uma travessa e ouvia a chaleira chiar, dizia a sim mesmo “está tudo bem, está tudo como planejado, está  tudo muito bem”.

O encontro entre amigos deu-se brilhantemente. Acordou cedo, deu os toques finais na casa, providenciou pão fresquinho e deu início a boa e velha maionese ensinada pela avó. Antes das 11h a “turma” – que não era sua, mas quem tem tempo de ter uma? – começou a chegar, e ela recebeu a todos com um “ele está levantando e já vem”. A tudo sorria, havia escolhido e gostava de sua pose de dona de casa moderna, trabalhadora prendada. Mesa posta, pudins e tortas desenformados, risos a todos os lados. Ela sorria, mas nem sabia por quê.  A cena era a de sempre, exatamente como havia sonhado. As alças de guardanapos, a coberta de mesa, os talheres muito bem selecionados. Estava tudo bem.

A chaleira ferveu, e inebriada de pensamentos ela derramou o líquido borbulhante sobre a louça. De tão envolta em si mesma e em como havia desempenhado bem seu papel de esposa dedicada, demorou a perceber que sua mão esquerda estava entre a louça e o líquido. Um grito de horror e ódio fez transbordar a dor que sentia de uma só vez. As lágrimas brotaram em profusão, e palavrões que ela há muito não pronunciava saíram aos borbotões.

O marido só veio à cozinha depois de ouvir o quinto copo quebrar. O som de vidro estilhaçado repetido cinco vezes quer dizer mais do que uma repentina estabanação; o barulho do inox das panelas estridente no contato com o chão definitivamente exigia que ele agisse. Foi recebido à porta por um prato voador, que se espatifou na parede ao seu lado. Ele ficou imóvel e olhava estupefato os pedaços de louça branca que se espalhavam a seus pés.Tudo havia estado muito bem por muito tempo, e ela não aguentaria mais aquilo.


***
Notinha da Ali: outro dia um amigo me disse que DR e uma pia de louça suja são coisas que não se combina, e a imagem disso gerou esse texto. Deixei ele quieto por um bom tempo até ver no clipe de Rolling in the deep a imagem traduzida da minha louça quebrada. Era o não-conto pedindo pra ir à rua. Dá play!

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