quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Temporal de São Miguel


É claro que havia de chover. São Miguel no 29 sempre nos banha depois de uma longa tarde de calor. Lembro os aniversários do meu primo, sempre muito divertidos, e invariavelmente chuvosos. Sabíamos todos disso, e por isso brincávamos feito doidos enquanto o temporal não vinha, usávamos o muro baixo entre o pátio da frente e o vizinho como rede de vôlei – assim as gurias também poderiam brincar – e corríamos entre brigadeiros, bolas e flashs. E o temporal vinha, e todos diziam que era assim, sempre foi, no aniversário dele. Hoje não foi diferente, mas eu estou longe, e já não vejo mais meu querido irmão que foi meu melhor amigo durante anos. Porque nos afastamos tanto de quem amamos? Porque perdemos a oportunidade de abraçar mais uma vez quem queremos bem? Porque deixamos para depois um reencontro que pode ser agora?

Sinto falta da nossa infância, e do terreno baldio onde caçamos vagalumes algumas vezes. Sinto falta das noites de calor as quais te associo, e os invernos frios em que nos escondíamos com o videogame. Sinto falta de uma infância que foi minha e compartilhei contigo, e que me deu um senso de solidariedade e nerdice sem igual. Vivíamos situações muito parecidas, origens muito próximas apesar de desenrolares muito diferentes, e acabamos em rumos tão distantes. Mas quanto mais eu ando, mais eu quero voltar e viver novamente aquelas tardes em que enganávamos a chuva e torcíamos pela misericórdia de São Miguel, para que o primeiro calor de setembro fosse aproveitado ao máximo, e que a brincadeira durasse até não ter fim.

Meu primo Rafa e eu, num papo cabeça nos idos da década de 80. 
Feliz aniversário :)


segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Matatiratirarei


Gira, gira, giramundo. O mundo quer que eu gire mais rápido que ele, mas só giro ao dançar. Danço e liberto. Evoco minhas deusas e deuses, evoco meus planetas e astros, e giro, e esqueço quem sou; cuidado a linha, ergue os braços! E gira, gira, giramundo, ou pelo menos gira esta província que Deus nos deu.


Gira, gira, embala e roda. Conhece, sente, cheira e prova. Mas por favor, me diz onde vou parar! Se era para eu ir, porque me deixou tanto acumular?




Mudo, levo tudo de volta para de onde veio e sigo além. Mas será isso mesmo? Que quereis vós-vós? Tanto fugi do anda anda, gira gira, vai e vem, e tão alegre vim aqui encontrar um pouso-caminho. Eles queriam uma princesa matatiratiratei e apareci eu. Fiquei na roda porquanto me aceitassem, e giro e giro girando enquanto outra roda quer uma jornalista matatiratirarei. Digo que sim e vou-me embora camotim? Ou digo que não, e fico aqui meu coração?


Roda roda, gira gira, e os cabelos giram no rodar enquanto os braços abrem e fecham na prática do praticar. Que quereis, vós-vós, matatiratirarei?


imagem via http://movimentococoeciranda.blogspot.com/

sábado, 24 de setembro de 2011

Pós-operatório


Como é bom a gente perceber que aquele embrulho no estomago se foi, que aquela dor de cabeça não volta, que o apetite retorna e a convalescença está no fim. Quem precisa abrir a si mesmo, analisar, arrumar o que está errado e fechar de volta para seguir a vida sabe quão doloridas são essas auto-cirurgias. Mas como todo pós-operatório, um dia a dor diminui, o enfermo consegue levantar da cama e cada pisada no chão é menos desagradável. Quando menos percebemos, voltamos a vida com toda a vontade e com saudade do que deixamos em espera. Retomamos tudo e só cuidamos de limpar e arrumar sempre para que a cicatriz seja mínima, quase invisível.

Tratamos a nós mesmos a todo o tempo, analisamos o que se passa em nossas entranhas e em nossa cabeça, e decidimos, por A ou por B, por ir ou voltar, pelo sim ou pelo não. É um processo doloroso, mas um dia “la pena se va, se va, se fué”. Convalesço de minhas análises internas e tento colocar os dois pés no chão firmemente para tomar decisões. O momento não é propício, mas elas urgem, e fingir que não estão aí, postas, apenas causam danos colaterais. Decidir não é preciso, e por isso precisamos decidir. Abro os braços e me jogo nas mãos do destino. Penso em benefícios a longo prazo, mas lembro que a vida se faz aqui, a curto prazo, a cada segundo e agora. E penso e decido, e preciso decidir logo. O que queres? Nada nem ninguém. Por que não vens? Porque fico.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

(não) Conto


A guria chegou em casa num estado lastimável que até assustou a mãe. Sentou à mesa, remexeu o prato e não comeu. “Estou com um embrulho na boca do estômago, não dá” avisou, e foi pro quarto se olhar no espelho. Estava um lixo, mas tudo bem. No outro dia sentiu uma palpitação forte no peito, que ia e voltava toda hora. O embrulho no estomago seguia, e fome, necas. Não demorou muito naquela semana apareceram as crises de falta de ar, seguidas de suspiros longos para recuperar o fôlego. A mão trêmula e gelada foi percebida até pelo avô, que já sugeriu remédios e médicos. Quando começou a ter uma leve febre nos finais de tarde, a mãe realmente se preocupou e estava a ponto de levar a guria no doutor. Quando já estavam todos mobilizados, a irmã mais velha notou o indício de delírio que estava ali o tempo todo: apesar de todos os sintomas, apesar daquela sensação de quase morte, o sorriso nunca saiu dos lábios. Suspende o médico, ela apenas está apaixonada.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Em perspectiva


Hoje ouvi uns absurdos sobre o que as pessoas acham absurdo fazer na cama. Tá, ninguém é parâmetro de ninguém, mas a conversa – ou melhor, relato – da menina tentando me convencer que isso ou aquilo não é coisa de gente normal – e eu só ouvindo – me fez pensar em como é chato essa coisa da gente ver o mundo só pelos nossos olhos. Estou eu aqui bem bela pensando que o mundo é mundo assim filtrado por esses belos olhos verdes e, pá!, faço algo que nunca fiz e mudo completamente minha perspectiva.
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É incrível como mínimas coisas podem afetar nossos filtros com relação ao mundo, e nos fazem entender muito mais o que se passa com o outro. Sim, todos já tivemos esse tipo de revelação, provavelmente, mas me impressiona a quantidade de gente que ainda não teve, ou teve e ignorou, porque continua achando absurdas coisas que, nem que seja pelos índices de vendas, não são tão absurdas assim. Um exemplo pra entender melhor? Artigos de sex shop, o grande absurdo para a menina que me falava.

O tempo passa, a gente muda e se vê em situações impensáveis – ou pior, muitas vezes pensadas e pensadas de forma completamente diferente, não raro carregadas de muito preconceito e julgamento. Achávamos que iriamos morrer se isso ou aquilo acontecesse; que nunca nos perdoaríamos ou viveríamos bem se fizéssemos ou deixássemos de fazer aquilo; que jamais seria possível lidar com a consciência pesada de ter ignorado aquilo outro. Quando menos esperamos, as coisas acontecem, fazemos ou deixamos de fazer, e ignoramos tantas outras, e tudo bem, a vida segue, e encostamos a cabeça à noite no travesseiro para dormir o sono dos justos. Mas uma coisa fica: a compreensão com o próximo que também é humano e também escorrega, também escolhe o caminho menos óbvio, que também faz coisas que a maioria acha absurda, mas que só quem passou entende o porquê e como é possível.

As velhas enxeridas vivenciaram pouco. As velhas enxeridas não dependem de idade nem de sexo, e estão dentro de cada um de nós, que também olhamos, apontamos e julgamos as pessoas. Porém, quanto mais experimentamos coisas diferentes, quanto mais desfazemos nossas próprias certezas, mais compreendemos a natureza alheia. E mais tolerantes com nós mesmos ficamos.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Antares


Estou com uma vontade louca de ir aos lugares que imaginei nos livros. Aquela sala em que alguém tocava um piano no fundo de uma casa em um conto do Machado me parece bem aconchegante no momento. A luz tremulante da lâmpada a gás dos idos séculos cairia bem no meu atual estado de espírito. Ou contemplar uma estrela a beira do rio que divide duas nações ao lado do fundador de uma cidade, enquanto ele se inspira nessa estrela para nomear Antares. Sua confusão torna o passatempo ainda mais divertido.

Queria ser uma criança pequena sentada à meia luz da escada do Sobrado, que em minha imaginação vi envelhecer e na qual ouvi ranger os passos da velha cega. Encontrei a praça de Santa Fé em uma foto antiga de uma cidade desse continente. Enxerguei o coreto cheio de mortos em uma cidade que não tem rio. Jacarecanga ficava no esquadro da janela do meu quarto antigamente; o rosa das paineiras sob a luz doce do março outonal que chega sempre estará impressa na minha retina e ambientará meus melhores sonhos.

Sento-me na praça em Antares e observo o coreto. Mas onde estão os mortos? Olho para os lados e não vejo nada, não vejo ninguém. O frio das escaiolas me penetra o corpo pela ponta dos meus dedos. Sinto a umidade que aqui não há; paredes escorrem anunciando temporais de São Miguel. Pelotas está em mim, e está em Satolep. Mas há tempos não faço corações em vidros embaçados.

Procuro outros rincões, que tenham verdes pastos e árvores sob as quais se possam fazer piqueniques. Espalho meus cabelos pela relva, fecho os olhos e sinto o calor amarelo do sol além deles. Sempre gostei dessa sensação de ver a luz mesmo com os olhos fechados. Sorrio. Respiro fundo e adormeço. E sob a luz de Jacarecanga vislumbro uma paineira entre cortinas de voal. O verde verdeja luxurioso na floresta tropical além. Y pescaditos de oro navegam sobre nossas cabeças. Estás conmigo, pero no encuentro la parra mientras se habla en amarras.

As amarras me sufocam, e essa opressão de um calor lancinante esmaga meu peito. Procuro tua mão firme e peço que me puxes para cima, para além. Deixas-me escapar por entre teus dedos e me sorris com tua boca fresca de ardor. Não compreendo, e procuro me agarrar em qualquer fiapo que me leve de volta. Onde estavam mesmo as paineiras, as escaiolas, os piqueniques? Os perdi. E dando voltas e voltas nesse labirinto, tudo que me chega é o cheiro putrefato dos mortos no coreto, que só piora conforme o calor aumenta. E eu que só queria apreciar aquela estrela vermelha, alfa de escorpião, à beira do rio da fronteira.


terça-feira, 13 de setembro de 2011

Direto do olho do furacão

Já que o universo resolveu me jogar no vórtice de um furacão, bem que eu podia encontrar por aí uma fenda entre o espaço e o tempo para poder dar uma pausa e curtir todas as coisas gostosinhas do mundo sem pensar nesse mundo de decisões que me espera a todo momento.

Pra que decidir tanto? Enquanto o tempo passa e o mundo anda, tudo e todos nos olham com olhos inquisidores que dizem “e aí? bora escolher, bora decidir”. E não contamos sequer com antenas que nos ajudem a perceber as condições do tempo e do espaço, nem mesmo uma dica sobre o clima – a lá se vão os grandes casacos passear nos braços esbaforidos. Ou será que as possuímos anteninhas invisíveis que de tão atrofiadas, de tão mal usadas, não as escutamos?


Procuro entender convergências astrais, consulto o tarô e estou quase apelando às runas. Meu par de antenas (por que sempre um par, por que não um trio para variar?) anda mal calibrado e não percebeu que ao falar de uma falta de rumo tal, estava na verdade prevendo a chegada de outros rumos ainda. Se não os ter me angustiava, conhecê-los me leva ao surto. Não ter opções é muito ruim; ter muitas opções com diversas e múltiplas combinações possíveis é enlouquecedor. E o maldito cérebro que adora se guiar pelo coração, esse vênus em escorpião que me comanda, faz do furacão um buraco negro.


Ó fenda espaço-tempo, deixa me refugiar em um cantinho qualquer. Levo comigo bagagem leve, só o mais gostosinho para passar o tempo que não há, e juro que saio logo, não que tempo seja problema seu. Eu vou, e volto, num piscar de olhos, que para mim pode durar um dia, um mês, uma vida. Aquela vida paralela que não há quem não queira, saber como seria a outra alternativa, ou pelo menos a chance de em uma mesma vida vivê-la duas vezes.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Passa, passará

De vez em quando eu vejo que a vida passa rápido de mais pra eu ficar esperando ela acontecer. Tenho dificuldade em me convencer de que planejar, esperar, aguardar e aguardar, sonhando com o dia em que tudo vai se resolver nada resolve. Quantos de nós queremos muito tantas coisas, mas passamos mais tempo e gastamos mais energia nos auto-sabotando do que indo atrás do que queremos – mas sabemos o que queremos? Estará claro e ajustado nosso foco?

Fico em um paradoxo entre me deixar levar e tomar as rédeas. Às vezes me deixo levar de mais pelo passar dos dias, e não tomo o controle dos rumos para os quais vou. Agarro-me a ideias de que cuidar dos detalhes da viagem é ter o controle dela. Não é, é perfumaria, sei disso, mas por tempos ignoro. Outras vezes, quando decido tomar a direção, minha inexperiência em traçar rumo próprio me faz meter os pés pelas mãos e encontrar um poste, um muro, um desfiladeiro em minha frente. Outras tantas e tantas, deveria simplesmente aproveitar o momento e ir. Fiz isso algumas vezes, e vim parar em pastagens nunca conhecidas. Talvez por só me deixar flanar em ventos violentos, fico com medo das brisas que passam, e me agarro forte na soleira da porta e me permito só de longe sentir os ares renovados passarem. E passo a vida. Até quando? Passa-passará, a de trás ficará, e eu não quero ficar pra trás, não quero ficar presa entre os braços da minha própria vida. Quero agarrá-la pelas mãos e levá-la comigo, ao meu lado, em mim, e por mim. Por meus próprios pés. Por uma vontade consciente. Porque quem de trás fica e vai para o fim da fila precisa puxar e puxar até rebentar o elo entre os braços que agarram.

passa passará quem de trás ficará a porteira está aberta para quem quiser passar oi biborá da cruz por aqui eu passarei por aqui eu passarei uma menina deixarei qual delas será a da frente ou a de traz a da frente corre muito e a de traz ficará passa por aqui passa por ali e a última ficaaaaaaaaaará

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Imagem: reprodução da tela de Andrea Honaise.